domingo, 6 de dezembro de 2020

ROCK - Suas Histórias & Suas Magias - Capítulo 11 Parte 1

Os Movimentos Sociais na Década de 60


1. Os anos 60 e o Movimento Negro Norte-Americano: Uma década de elevação de consciência, eclosão de sentimentos e mobilização social 
Shirlena Campos de Souza Amaral, Leandro Garcia Pinho, Giovane do Nascimento 

O movimento negro norte-americano inspirou muito dos movimentos sociais que ocorreram nos Estados Unidos a partir da década de 60, inaugurando uma série de protestos de uma época. Nesse sentido, o presente trabalho propõe o pensar dos anos 60, como uma década de importantes transformações políticas, culturais e comportamentais; assinala o contexto de luta pelo direito a igualdade, a emancipação e o fim da segregação racial; e, procura dimensionar o significado da força de um tempo passado, também, a partir da repercussão social da música negra como expressão de sentimentos e contestação social. 

Movimento dos Direitos Civis nos EUA / Foto: Steve Schapiro 

a) Uma breve apresentação 

“Ouso acreditar que as pessoas, em todas as partes, possam ter três refeições ao dia para os seus corpos; educação e cultura para as suas mentes; e dignidade, igualdade e liberdade para os seus espíritos” (King, 2006). 

A história da humanidade – sobretudo a partir da Revolução Industrial, num contexto de emergência de afirmação do capitalismo como sistema econômico, bem como após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) – nos apresenta uma participação marcante de movimentos sociais na luta por direitos, em busca de conquistas. O estreitamento de laços entre movimentos, principalmente os decorrentes das antigas colônias dos países europeus com o movimento negro norte-americano, vem sendo assinalado como um importante passo para a definição conceitual das bases unificadoras das lutas contra a segregação racial no mundo ocidental. 
Num passado recente, na década de 1990, no Brasil, por exemplo, pudemos assistir a uma das mudanças significativas em termos de mobilização do movimento social negro contra o racismo, por meio da reutilização da música rap como expressão cultural, ou seja, como instrumento de luta contra a opressão racial, em prol da igualdade. Tal evento nos remete às mudanças decorrentes do movimento histórico de uma geração, bem como às estratégias políticas e ao postulado de um movimento, que vem sendo referência clássica para o movimento negro brasileiro, qual seja: o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. 
Interessa-nos nesse texto pensar os incríveis anos 60, como uma década de importantes transformações políticas, culturais e comportamentais em diversos países. A identificação dos processos de profundas mudanças geradas pelas idéias libertárias que se fortaleceram a partir da década de 60 parece-nos uma constatação presente em trabalho de distintos autores. Nossa proposta exige atenção à percepção de Eric Hobsbawn (2002) que, em sua obra “Tempos Interessantes: uma vida no século XX” exprime os anos 60 como o ápice da Era de Ouro no século XX, uma década de movimentos libertários, que trouxe um novo olhar para assuntos como sexualidade, repressão, instituições, poder e reconhecimento dos direitos das minorias e que posteriormente foram identificados com o movimento de Maio de 1968, tornaram-se símbolos de novas perspectivas para o mundo contemporâneo. 


O movimento pela igualdade racial em Chicago – History Channel 



Geertz (1997, p. 146), que assinala a arte como uma das expressões da vida em sociedade, ou seja, como “textura de um padrão de vida específico”, também nos ajuda a pensar o tempo, em que as manifestações deixaram de ser preocupações privadas e tornaram-se públicas, seja na sua expressão mais propriamente política, seja contra cultural; tempo de efervescência política e de singulares inovações culturais, marcada, sobretudo pela música negra – enquanto arte e expressão de agregação do desejo de mudança, de comprometimento com as lutas pelos direitos civis por nova forma de vida. Desse modo, nosso objetivo neste texto é apresentar, sem pretensão de esgotar o tema, reflexões sobre os anos 60 e o movimento negro norte-americano, tentando dimensionar, mesmo que de bem longe, o significado da força de um tempo passado, a partir da repercussão social da música negra como expressão de sentimentos e contestação social. 

b) Os anos 60 e a expressividade de um movimento 

Escrever sobre os anos 60 nos remete, dentre questões, às motivações que marcaram àquela década. O início dos anos 60 vem sendo apontado como referência de uma série de mobilizações em massas e protestos organizados por grupos de luta pela igualdade e o fim da segregação racial nos Estados Unidos. Na esfera jurídica, a reivindicação por direitos iguais somava-se a luta pela emancipação – a afirmação da crença no indivíduo livre –, mas igualmente se afastava dos padrões normativos e de normalidade da época. 

A Marcha de Selma a Montgomery 

O movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos (1955-1968) esteve extremamente vinculado à luta da minoria negra estadunidense em abolir a segregação racial no país. Em referência a década de 1960, Silva (2001, p. 29) confirma ter sido esta um momento de efervescência dos movimentos negros norte-americanos, que passaram a exigir o cumprimento das leis relativas à igualdade. Exemplificando tais legislações, Moehlecke (2000, p. 22) rememora as significantes Emendas Constitucionais, a saber: a) a de n.º 13, de 1863, que estabeleceu a abolição do sistema de escravidão nos Estados Unidos da América; b) a de n.º 14 que, em 1868 garantiu aos afro-americanos a cidadania plena, proibiu proteção inigualitária dos Estados para com estes, determinando, ainda, o direito a um processo judicial justo em caso de sentenças; e c) a de n.º 15, aprovada em 1870, que concedeu aos mesmos o direito ao voto, sem manipulação. 


Eles não aceitaram o movimento! – History Channel 



Entretanto, essas garantias jurídicas, na prática, não ocorreram, devido à intransigência étnica dos brancos, que se evidenciavam como “racialmente” superiores e categoricamente favoráveis ao segregacionismo, sustentados em primazia pelos estados do sul. Nesse aspecto, Walters (1997, p. 105-106) lembra a forma de visibilidade da segregação institucionalizada no Sul, ao comentar, a título de exemplificação, que “os negros pagavam uma taxa para a manutenção das instituições públicas, como bibliotecas, em muitas cidades do Sul, até mesmo das que eram fechadas a eles, e ainda, em muitos lugares, reinava o terror da violência física”. Via de regra, os negros viviam em estados deploráveis. 

Salvem nossas crianças da praga negra 
Bettmann Archive / Getty Images 

Referindo aos anos de 1954, Greil Marcus (2010) recorda da decisão unânime da Suprema Corte nos Estados Unidos pela inconstitucionalidade da segregação em escolas públicas, por tratar-se de “afronta à nação”. Assim, tal situação não poderia mais se prolongar mediante juízes federais aos poucos ordenando que a decisão fosse posta em prática, ou seja, “aplicada onde as pessoas efetivamente viviam, distrito por distrito, ano por ano, as crianças negras tentando entrar em escolas anteriormente só para brancos eram agora empurradas, cuspidas e xingadas por multidões cruéis que as teriam matado se a Guarda Nacional não estivesse ao seu lado”. 

Tudo o que eu quero ganhar neste Natal é uma escola branca e limpa 
Bettmann Archive / Getty Images 

Esse cenário de segregação “racial” e de discriminação às minorias étnicas compôs, também, a política geral de empregos em grande parte das indústrias norte-americanas. Em 1955, apesar de haver uma considerável proporção de 55% de negros presentes na força de trabalho, salienta Walters (1997, p. 106) que essa magnitude necessita ser analisada melhor, por outra lógica, vez que havia uma concentração de negros nos valores salariais menores e, em sua maioria, para profissões não-especializadas, o que derivou do padrão histórico de tratamento dos afro-americanos e favoreceu as lutas destes por práticas de empregos mais justas, dentre outras, desde a década de 1940. 

Ativistas dos direitos civis (com cartazes escritos: "Eu sou um homem") 
são impedidos de protestar pela Guarda Nacional em Memphis, Tennessee, em 1968 
Bettmann Archive / Getty Images 

Marchas, demonstrações de protesto e boicotes aqueceram-se. Atuação que se tornou célebre na história foi o boicote dos negros aos ônibus de Montgomery, no Alabama, ente 1955 e 1956, liderado pelo líder Martin Luther King Jr, o que “desencadeou uma longa série de esforços para dessegregar os transportes públicos, as escolas e os locais de hospedagem pública em todo o sul” (Bowen e Bok, 2004, p. 35-36). 

Boicote aos ônibus em Montgomery 

Mas é a década de 1960 que vem sendo assinalada por intensa pressão dos grupos organizados da sociedade civil, especialmente os denominados “movimentos negros”, liderados por Martin Luther King e Malcom X, ou grupos radicais como os “Panteras Negras”, na luta pelos direitos civis. Tais grupos impulsionaram o clamor pela igualdade racial, estendendo-se o pleito para a dignidade racial, igualdade econômica e auto-suficiência política. O apoio e o envolvimento da população negra em relação a esses movimentos puderam ser observados na “Marcha Sobre Washington por Empregos e Liberdade”, realizada em 29 de agosto de 1963, que reuniu aproximadamente 250 mil pessoas, incluindo grupos religiosos protestantes, católicos e judeus, além de lideranças negras e brancas (Gonçalves e Silva, 2000, P. 39; Moehlecke, 2000, p. 25). 

A Marcha sobre Washington - Magnum Photos 

O sentimento coletivo de necessidade de reparação dos direitos civis e econômicos dos afro-americanos, também pode ser depreendido da resposta do líder político negro pacifista, Martin Luther King Jr., em janeiro de 1965, quando arguido sobre a justiça de sua proposta de programa de ajuda econômica com custo de 50 bilhões de dólares, que abrangesse não apenas os negros, mas também os desfavorecidos de todas as raças, ao pronunciar: 

“Com certeza, sim. Algum cidadão justo pode negar que o negro tem sido desfavorecido? Poucas pessoas refletem que por dois séculos o negro foi escravizado e privado de salários – dos potenciais benefícios e da riqueza que teriam sido o legado aos seus descendentes (...)” (Walters, 1997, p. 105). 

Ainda em 1965, o líder do movimento negro se manifestou duas vezes contra as intenções imperialistas dos Estados Unidos na guerra do Vietnã. Era reflexo das mobilizações presentes contra o racismo. 

Protestos contra a Guerra do Vietnã – AP Photo 

Dois anos após, em quatro de abril de 1967, no discurso proferido por Martin Luther King Jr – na igreja Riverside, na cidade de Nova York – intitulado “Além do Vietnã”, observamos o chamamento pela apreensão da história de uma nação e pelos mandamentos da consciência nacional e humanista. Na obra, “Um Apelo à Consciência: os melhores discursos de Martin Luther King” (KING, 2006), temos depoimentos de quem vivenciou o tempo – a década de 60 – como: 

“(...) uma época revolucionária. Por todo o planeta homens se revoltam contra antigos sistemas de exploração e opressão e, longe das feridas de um mundo debilitado, novos sistemas de justiça e igualdade estão nascendo. Os miseráveis da terra se levantam como nunca antes. Aqueles que viviam na escuridão viram uma luz grandiosa. Nós, o Ocidente, devemos apoiar essas revoluções. É triste perceber que ao conformismo, à complacência, a um medo mórbido do comunismo e à nossa propensão para nos ajustarmos à injustiça, as nações ocidentais que deram origem ao espírito revolucionário do mundo moderno tornaram-se agora o bastião anti-revolucionário. Isso fez com que muitos acreditassem que o marxismo tenha um espírito revolucionário. Por isso, o comunismo é um veredicto contra a nossa incapacidade de tornar a democracia uma realidade e de seguirmos fiéis as revoluções que iniciamos. Nossa única esperança hoje se encontra em nossa habilidade de retornar o espírito revolucionário e sair para o mundo, por vezes hostil, declarando eterna hostilidade à pobreza, ao racismo, ao militarismo. Com esse vigoroso compromisso, desafiaremos corajosamente o status quo e as prática injusta, e assim anteciparemos o dia „em que todo vale será alterado e toda a colina, abaixada; que o áspero será plano e o torto, direito” (KING, 2006, p.129). 

Em continuidade Luther King explica melhor o chamado ao companheirismo universal, em que revolução – nacional e mundial – construiria um mundo novo acima das raças, classes e nações: 

“Uma genuína revolução de valores significa, em última instância, que nossas fidelidades devem se tornar mais ecumênicas que sectárias. Toda nação deve agora desenvolver uma fidelidade suprema à humanidade como um todo, a fim de preservar o melhor de cada sociedade em particular. Esse chamado a um companheirismo universal que eleva o respeito fraterno acima de tribos, raças, classes e nações é, na realidade, um chamado a sentir pela humanidade um amor totalmente abrangente e incondicional” (KING, 2006, p. 130). 


The Montgomery Bus Boycott 



Em resposta a pressão do crescente movimento civil exigindo mudanças, podemos dizer, portanto, que uma das grandes lutas do movimento pelos Direitos Civis, nos anos 1960, foi conquistar uma legislação civil – o Civil Rights Act (1964) e o Voting Rights Act (1965) visando desmantelar a estrutura formal que negava o direito de voto e admitia a segregação aos negros. 

Martin Luther King Jr – Picture-Alliance / AP Photo 

Essa legislação é, sem sombra de dúvidas, referência basilar das políticas de ação afirmativas, à medida que revogou as leis segregacionistas vigentes até então nos Estados Unidos da América, digamos, que objetivou “quebrar as barreiras erguidas pelo sistema da supremacia branca” (Walters, 1997, p. 105), já que o “grupo principal cujos pleitos proporcionaram o estímulo e o racional dessa lei foi o dos negros” (Sowell, 2004, p. 115). 
Assim, o estatuto basilar da evolução histórica da ação afirmativa nos Estados Unidos da América, a Lei dos Direitos Civis, de 1964, adveio do Movimento dos Direitos Civis, de 1960, quando o presidente democrata, John Fitzgerald Kennedy, utilizou a expressão oficialmente em um texto, em 06 de março de 1961 (Medeiros, 2004, p. 122), propondo “medidas positivas de oportunidades iguais para todas as pessoas qualificadas no governo” (Cashmore, 2000, p. 33), ou seja, medidas com o objetivo de “ampliar a igualdade de oportunidades no mercado de trabalho” (Menezes, 2001, p. 27). Em apenas dois meses de mandato, Kennedy expediu a Executive Order no. 10.925, que além de ter, conforme salientado, empregado o termo pela primeira vez em um texto oficial, embora com conotação restrita – o que gerou, pioneiramente, a elaboração de um delineamento jurídico –; além disso, criou um órgão do Estado para fiscalizar e reprimir a discriminação existente no mercado de trabalho, que teve por termos: 

“Nos contratos celebrados com o governo federal, o contratante não discriminará nenhum funcionário ou candidato a emprego devido a raça, credo, cor ou nacionalidade. O contratando adotará ação afirmativa para assegurar que os candidatos sejam empregados, como também tratados durante o emprego, sem consideração a sua raça, seu credo, sua cor, ou nacionalidade. Essa ação incluirá, sem limitação o seguinte: emprego; promoção; rebaixamento ou transferência; recrutamento ou anúncio de recrutamento, dispensa ou término; índice de pagamento ou outras formas de remuneração; e seleção para treinamento, inclusive aprendizado” (Ibid., p. 88). 

John F Kennedy 

À época, Kennedy submeteu ao Congresso diversos projetos com propósitos de estabelecer igualdades de oportunidades, tendo logrado alguns êxitos, dentre eles o advento do “Equal Pay Act, em 1963, que proibiu que as mulheres recebessem, pelo mesmo trabalho uma remuneração inferior à dos homens” (IBID., p. 89). Com o inesperado assassinato de Kennedy, em novembro de 1963, seu sucessor, Lyndon Baines Johnson (1963-1968), buscou dar prosseguimento aos projetos legislativos que se encontravam em trâmite – no sentido de atender às grandes demandas sociais e aos direitos das minorias civis – e obteve sucesso junto ao Congresso na aprovação do Ato dos Direitos Civis (Civil Right Act), em julho de 1964, que impôs, no plano legal: 

“(...) a proibição de discriminação ou segregação em lugares ou alojamentos públicos (Título II); a observância de medidas não discriminatórias na distribuição de recursos em programas monitorados pelo governo federal (Título VI); a proibição de qualquer discriminação no mercado de trabalho calcada em raça, cor, sexo ou origem nacional, proibição essa que deveria ser observada pelos grandes empregadores, assim compreendidos todos aqueles que tivessem pelo menos quinze funcionários, incluindo-se as universidades, públicas ou privadas (Título VII)” (Ibid., p. 90). 

Tal como enfatiza Walters (1997, p. 105), em 1964, nos Estados Unidos da América, “os negros viviam em guetos raciais, distantes dos brancos e, na maior parte do país, não podia usufruir, maneira integral dos bens e serviços públicos”. Qualquer movimento que desconsiderasse a questão racial já não fazia sentido e, certamente, a articulação com a pobreza representou uma cobrança histórica inseparável. Assim, era momento de necessárias mudanças. Na busca de igualdade de tratamento e de oportunidade, alicerçado na ideia de que o indivíduo só poderia se desenvolver com plena liberdade numa sociedade igualitária em sem hierarquias, os movimentos pelos Direitos Civis liderados por afro-americanos permaneceram pressionando as instituições públicas, tendo reciprocidade, sobretudo da Suprema Corte, ao adotar medidas que tenderiam a minimizar ou, mesmo, buscar excluir as formas de discriminação racial Norte-Americana. Como exemplo, no julgamento do caso “Griggs” versus “Duke Power Company”, em 1971, a Suprema Corte Norte-Americana sentenciou contrariamente à empresa, que exigia o diploma de segundo grau para ocupações de determinadas funções. A decisão da Corte fundamentou-se na violação do Artigo VII da Constituição Federal e foi mais além, ao inverter o ônus da prova, “determinando ao acusado a responsabilidade de demonstrar a ausência de práticas” que promovessem “impacto desigual sobre grupos minoritários, ao excluí-los das oportunidades de emprego”. 
O caso “Griggs” serve para distinguir dois momentos em que as ações afirmativas, tão em voga na nossa experiência brasileira, foram compreendidas nos Estados Unidos da América: o lapso temporal entre 1863 – com a abolição da escravidão negra – e meados de 1960, caracterizado por políticas “color-blind”; e o período pós-movimentos sociais dos afro-americanos, “transformado em políticas „race-conscious‟, cujo fundamento central era a concepção da proporcionalidade de representação de grupos na sociedade” (Moehelecke, 2000, p. 28). 

c) A música negra como expressão de minorias: algumas considerações 

Nos anos 60, segundo recordamos, os norte-americanos vivenciaram um momento singular de reivindicações democráticas, expressas, nitidamente, no movimento pelos Direitos Civis. Em particular, a luta contra a segregação racial resultou em mudanças, seja na legislação racista do país, seja no fortalecimento do movimento pela valorização da cultura negra. O movimento negro, nesse contexto, surgiu como uma das principais forças, apoiado por liberais e progressistas brancos, em larga defesa de direitos. Em meio ao surgimento do movimento negro e da ascensão de Martin Luther King, como um dos líderes do movimento, assistimos ainda, nos anos 60, às inovações culturais, às lutas transformadas em música, enfim as experiências muitas vezes invisíveis, porque quiçá se perderam nos acontecimentos cotidianos. 
Os questionamentos gerados naquele período não eram conectados aos objetivos partidários, à medida que traziam o contexto urbano, das relações sociais e de toda a gama de singularidades da sociedade. Assim, o homossexualismo, a questão ambiental, a discussão étnica, o racismo, a luta pelos direitos de igualdade, a própria liberdade individual e sexual, além da tentativa de romper com toda a cultura institucionalizada no ocidente, proporcionaram sentidos de valores que influenciam, de alguma forma, a sociedade ainda hoje. 
É nesse sentido que o historiador marxista, Eric Hobsbawm, identifica os anos 60, como o ápice da Era de Ouro no século XX, ao passo que, 68 é espécie de síntese dos anos 60. Por outros termos, em “Tempos interessantes: uma vida no século XX”, Hobsbawm expôs: “Para os esquerdistas de meia-idade como eu, maio de 1968, e na verdade toda a década de 1960 foram tempos extraordinariamente bem-vindos e extraordinariamente desconcertantes” (2002, p. 277). Interessante é que Hobsbawm (2002, p.279) escreveu em outro tempo – anos 90 – e na perspectiva de quem vivenciou a época, faz a sua leitura: “Olhando para trás depois de pouco mais de trinta anos, é fácil ver que interpretei mal o significado histórico da década de 1960”. Teria errado Hobsbawm? Parece-nos que não. Esse erro de interpretação se deve, segundo Hobsbawm, ao fato de não ter medido adequadamente a dimensão das modificações radicais que estavam ocorrendo na sociedade daquela época. Assim, o texto assinala a dinâmica de constante reescrita que constitui a história. 
Também, Alain Tourraine, referindo-se ao maio de 68, destaca a entrada de problemas culturais na vida política. “Em 68 falava-se de sexualidade, de homossexuais, de minoria étnica, de greve, bom, de tudo o que é hoje a vida cotidiana” (Tourraine, 2008, p.5). Ainda, conforme suas palavras: maio de 68 representa a primeira vez que houve um movimento da juventude. Era um movimento de estudantes. Foi o movimento dos estudantes que lançou toda esta renovação de costumes e de ideias. Depois de 68, o tema central da vida coletiva, que era o trabalho, virou sexualidade, que se tornou um tema em todas as partes da sociedade. 
As ideias libertárias inspiradas pela contracultura e pela Nova Esquerda, que despontaram em 1968, também começaram a auferir espaço no Brasil no fim da década de 1960, momento marcado pelo endurecimento do regime autoritário e pela forte repressão aos movimentos políticos de oposição. Soto e Zappa (2008, p. 26) expõem o clima de tensão da época no nosso país: “No meio estudantil, os ânimos também se acirravam. Secundaristas começavam a protestar por mais vagas nas universidades (...). No dia 15 de janeiro, estudantes cariocas saíram às ruas em passeata. Em Belo Horizonte, estudantes fizeram manifestações contra a ditadura militar, em frente à Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais”. 
Para além dos Estados Unidos e Brasil, em diversos países, como França, Alemanha e Tchecoslováquia jovens se rebelaram vigorosamente contra o autoritarismo. No mundo todo, estes anos foram marcantes em termos de mobilização social e cultural, conforme ressalta Groppo (2000) e, certamente, mudaram a própria concepção do fazer política. 
No âmbito musical, no decorrer da década de 1960 – e mesmo 1970 – os Estados Unidos e grande parte do mundo vivenciaram os embalos do rock and roll. Mas, para os negros dos norte-americanos, os anos 60 não foram de rock and roll. Naquele tempo, de conscientização da comunidade, de sentimentos de comunhão e de orgulho, de sonhos de justiça, igualdade e liberdade, o que se ouvia nos guetos era o soul – mistura de gospel e rhythm and blues. James Brown cantava “Say it loud: I’m black and proud!” (Diga alto: sou negro e orgulhoso!), frase de autoria do líder sul-africano Steve Biko. 


Gary B.B. Coleman - The Sky is Crying 



Ben E. King - Stand By Me 



The Very Best Of Soul - Greatest Soul Songs Of All Time - Soul Music Playlist 



Vale rememorarmos que a música negra (black music) surgiu com a vinda dos negros africanos, como escravos, para a América do Norte – a partir do Spiritual (cântico dos escravos que trabalhavam nas plantações de algodão), que originou o blues e o jazz, e, sucessivamente, o rock6 e soul, dentre outros estilos. Spency Pimentel (2002, p. 19) destaca que, de fato, é no processo de captura dos africanos, para serem escravos na América que começa todo protesto, toda revolta da música norte-americana. Contudo, as works songs eram uma forma dos africanos, considerados escravos, expressarem suas emoções nos campos de trabalho. Mesmo depois da abolição nos Estados Unidos da América, datada de 1865, essas canções sobreviveram, mas mudou a temática, já que livres, os negros em vez de enfrentarem a crueldade dos senhores, passaram à marginalização, ao desemprego, aos baixos salários. Após a abolição da escravatura, a incorporação das canções de trabalho com os acordes dos hinos religiosos originou blues, a primeira manifestação individual dos cativos libertos, que expressava as angustias e as dores do homem negro – “liberto, antes escravo, agora marginal” (Ibid., p. 20-21). 
Lembra Paul Friedlander (2008, p.100) que “em meados dos anos 50, jovens negros podiam ser encontrados nas escadarias e nas esquinas de Nova York e de outros centros urbanos para “fazer um som‟. Em grupos de quatro em cinco rapazes eles ensaiavam harmonia de músicas de rhythm and blues, torcendo para serem descobertos por um caça talentos (...)”. O estilo de música cantada por aqueles jovens – talentos surpreendentes, que cantavam uma história que eles conheciam e cujas motivações não eram coincidentes – foi rotulado, em seguida, de doo-wop, tornando-se este nos fins dos anos 50, a forma mais popular da música negra. 


The Moonglows - Over and Over Again 



Mas, “nos anos 60, o doo-wop, assim como o rock clássico, estava começando a desaparecer. O som tornou-se mais suave na mesma proporção em que os rostos ficavam brancos”. De todo modo, “como o rock clássico, o doo-wop também teve um impacto importante na música dos anos 60, ele favoreceu as bases vocais para a Motown e, em menor escala para o soul music”. Nesse sentido, finaliza Friedlander: 

“O doo-wop deve ser lembrado como uma forma de música altamente acessível, um estilo disponível para qualquer um que desejasse cantar com os amigos. Um grande número de jovens urbanos tentou, experimentando, diferentes graus de sucesso. Alguns encontraram o caminho para as luzes de néon da Broadway (...)” (IBID, p.100-101). 

O sucesso do soul music, de James Brown, dos Jackson Five, dos slogans do black Power, que celebraram o orgulho étnico noa snos 60 e inspiraram um modelo negro de imagem, coincidiu com o desenvolvimento do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos. O soul music oferecia um repertório composto em sua maior parte por baladas que tematizavam o amor e a paz. No entanto, as canções mais combativas ou “engajadas” enfatizavam o orgulho da herança africana e revelavam a perspectiva social, ao apresentarem as precárias condições de vida enfrentadas pela grande maioria dos negros estadunidenses. Desse modo, como manifestação de orgulho da identidade negra e de luta por um melhor posicionamento dos negros na sociedade americana, promovendo o desenvolvimento da auto-estima e a consciência coletiva, o movimento soul apresentou seus códigos de comportamento, de dança, de vestimenta, visivelmente definidos dentro da premissa da igualdade e fraternidade. A partir da década de 60 o sucesso da soul music foi embalado por nomes como James Brown, Aretha Franklin, Ray Charles, Sam Cooke, Dionne Warwick, Diana Ross, Marvin Gaye, dentre outros. Os artistas da Motown é que, na época, foram capazes de concorrer com The Beatles nas paradas de sucesso e vendas de discos. 


The Supremes - Stop In The Name Of Love (Ready Steady Go - 1965) 



A Motown foi recorrendo às palavras de Paul Friedlander (2008, p.246) “o lado B do soul. (...). é o feeling rítmico, suave e vigoroso para a batida tórrida e suave do soul (...)”. Foi, assim, uma das principais gravadoras americanas promotoras de artistas negros, como Diana Ross, Marvin Gaye, The Supremes, Jackson Five, que fez sucesso também entre os brancos (o que era para Barry Gordy Jr. uma expectativa “fazer música eclética”), com um estilo de soul próprio, mais suave e comercial, abrindo caminho para os anos 70. A importância da Motown, surgida em Detroit, fundada a 12 de janeiro de 1959 por Barry Gordy Jr., foi muito além da música, vez que o “seu empenho em participar do sonho americano”, foi fundamental para a integração racial na cultura popular norte-americana. A Motown de forma singular influenciou uma geração ao tratar de temas sócio-políticos. 
Para aquela época de ouro (1964-1971), conforme conclui Paul Friedlander (2008): 

“(...) a vibrante versão da Motown para o amor negro derrubou todos os concorrentes nas paradas de sucesso. Eles se tornaram a trilha sonora dos adolescentes da América e a música que fazia todo mundo dançar. Com o gênio musical e empresarial de Gordy servindo de base para o som, uma fórmula de sucessor foi desenvolvida para melhor representar as raízes musicais negras e utilizar melhor a tecnologia musical da época. As letras eram elaboradas para atingir uma ampla camada da América jovem e branca. E, por um tempo, a Motown esteve no topo. Mas, o gosto popular mudou, pessoas importantes se foram e a gravadora foi forçada a renunciar ao seu reinado na música popular” (IBID, p.263). 

Ante ao que foi dito, num processo incipiente de organização de idéias, os Freedom Rides, a produção musical em massa da Motown, a ascensão dos movimentos Black Power, do funk e do soul music encontraram no espaço musical e político a revelação de um momento da história americana que já não pode mais ser apagado, em virtude dessas canções. Mantidos pela efervescente política dos anos 60, sobretudo pelas lutas pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, permanecemos à espera de prosseguir no desenvolver desta reflexão, sobre uma época cuja característica ímpar foi à esperança, e que deixou fundamento no mundo para uma nova postura diante do tempo e da vida. Anos que se registram marcantes em termos de mobilização social e cultural, e na própria concepção do fazer política. Falamos, aqui, de qualidade política que, nas palavras de Pedro Demo, implica em representatividade, legitimidade, convivência, solidariedade comunitária, consciência política, capacidade crítica e autogestão. Igualmente, da concepção de que não se deve ocultar a realidade primeira de que “a desigualdade se enfrenta a partir dos desiguais”. 


Aretha Franklin - Won't Be Long (Shindig - Dec 2, 1964) 



Sam Cooke - Good News 



Ray Charles - Georgia on my Mind Live 1960 



2. 1966: o ano em que a cultura jovem explodiu 
Jon Savage 

Foi a era do sexo, das drogas e da revolução pop, mas também dos protestos contra a guerra e dos motins nas cidades. E quanto mais o jovem empurrou para frente, mais os adultos empurraram para trás. Jon Savage descreve um ano que ainda está assustando o sistema. 

Dançando de LSD em Los Angeles, 1966. 
Fotografia: Lawrence Schiller / Polaris Communications / Getty Images 

Em 25 de março de 1966, o Jefferson Airplane e o Mystery Trend tocaram uma “dança beneficente rock & roll” em apoio ao Comitê do Dia do Vietnã . Custando US $ 1,50 para entrar, a "viagem de paz" foi realizada no Harmon Gym, no campus da Universidade da Califórnia em Berkeley - a instituição que, após o discurso de Mario Savio de dezembro de 1964 "ponha seus corpos na engrenagem" , se tornou o centro do radicalismo estudantil americano, em particular os protestos contra a escalada da guerra do Vietnã. 
O evento foi um dos vários eventos beneficentes de "rock da paz" realizados no ginásio naquela primavera que cimentaram a ligação entre os políticos de Berkeley e os boêmios da nascente cena musical de São Francisco: outros exibiram o Grateful Dead, a Grande Sociedade e o ( original) Charlatans. Citando um desses programas, o colunista Ralph Gleason observou que a cidade estava “à beira de outra mania da dança” como não acontecia “desde a era do swing”. Nada aparentemente desagradável ali. 
O problema começou algumas semanas depois, quando o San Francisco Examiner citou o evento Harmon Gym em um artigo altamente crítico sobre Berkeley. “O cheiro doce e acre de maconha impregnava a área, muitos dos dançarinos estavam obviamente embriagados”, escreveu o repórter Jack S McDowell. “A má conduta sexual foi flagrante”. O pano de fundo para isso foi o lançamento de um adendo ao relatório Burns, preparado pelo comitê do senado estadual da Califórnia, que alegava infiltração comunista no Movimento pela Liberdade de Expressão de Berkeley e muito mais, resumido pela frase “um dilúvio de sujeira”. 

Marcha de protesto do Dia do Vietnã em Berkeley 
Los Angeles Herald Examiner Photo Collection 

Seis dias após o artigo do Examiner, Ronald Reagan subiu ao palco do Cow Palace para fazer um discurso definidor de sua campanha para governador. Ele citou o show Harmon Gym como um excelente exemplo do que ele chamou de “a lacuna da moralidade em Berkeley”. Misturando rock'n'roll, drogas e sexo - "os torsos nus de homens e mulheres" projetados pelo show de luzes - com o "movimento do discurso imundo" e o Comitê do Dia do Vietnã, Reagan pediu um exame de raiz e ramificação do " acusações de comunismo e mau comportamento sexual flagrante no campus ”. Como ele trovejou: “O que em nome dos céus a liberdade acadêmica tem a ver com tumultos, com anarquia, com tentativas de destruir o objetivo principal da universidade, que é educar os jovens? ” 
Tendo feito seu nome durante a campanha presidencial de Barry Goldwater em 1964, Reagan estava ocupado se posicionando como uma figura de proa no ressurgimento republicano. Suas posições eram freqüentemente expressas com vigor: pró-negócios, anti-regulamentação; pró-autoajuda (como na ideia de “sociedade criativa” - uma precursora da “grande sociedade” de Cameron), intervenção anti-estado; pró-meia-idade oprimida, anti-cabeludo, comunistas e manifestantes de guerra que aparentemente lotavam o campus de Berkeley. 
As afirmações de Reagan sobre o concerto do Harmon Gym foram, admite seu biógrafo Robert Dallek, “muito exageradas”. No entanto, eles estavam a serviço de um sentimento poderoso: a saber, que, diante dos sintomas da psicodelia incipiente, muitos adultos estavam convencidos de que as liberdades da cultura popular e que a “grande sociedade” do presidente Lyndon B. Johnson havia saído do controle. Não era apenas sexo e drogas, mas protesto contra a guerra e tumultos no interior da cidade. As coisas estavam indo longe demais, rápido demais. Era hora de pisar no freio, e Reagan seria o agente mais visível dessa reação. 
A década de 1960 permanece na memória popular como uma época de ouro da cultura pop, com 1966 consagrado no Reino Unido como o ano de Londres e da vitória da Copa do Mundo. Foi o ano dos singles que são regularmente coletados nas compilações anunciadas na TV que você compra por £ 5 ou menos: Sunny Afternoon; Estenda a mão, estarei lá; Boas Vibrações; Summer in the City - arte pop em massa tão imperecível que não pode ser ofuscada por nostalgia barata e repetição infinita. 

Apoiadores do Comitê do Dia do Vietnã Jefferson Airplane 
RCA Records, Getty Images 

Mas 1966 foi um ano de turbulência. Tudo começou no pop e terminou no rock; começou nos direitos civis e terminou no poder negro; começou na grande sociedade e terminou no ressurgimento republicano. Inspirados pelo sucesso do movimento pelos direitos civis e impulsionados pelo dinheiro investido nas indústrias musical e juvenil, os jovens nos Estados Unidos e no Reino Unido começaram a pensar em outra forma de vida, que não envolvesse ser como seus pais. Eles estavam começando a imaginar o que o futuro poderia ser. 
Foi também o ano em que a tocha passou da Inglaterra para a América, de Londres para Los Angeles, que se tornou o local pop central, graças aos Mamas and the Papas, os Beach Boys e os Monkees - sucessos dos Beatles que floresceram exatamente como os originais deixaram o palco. A Califórnia tinha suas próprias topias juvenis, zonas razoavelmente autônomas onde os jovens podiam se reunir e experimentar novas formas de vida: o Haight / Ashbury em San Francisco, o Sunset Strip em Hollywood. 

Bob Dylan – Getty Images 

O modernismo pop estava começando a se fragmentar sob o impacto da maconha, do LSD e da pura exaustão. A aceleração hercúlea do pop resultou em muitas baixas: durante 1966, os Beatles, Bob Dylan e os Rolling Stones perderam o ritmo, mas não antes de terem expressado provocativamente sua insatisfação - Dylan com seus segmentos de show elétrico polarizado, os Beatles com seus notórios Capa do LP “Butcher” (produzido por sua gravadora americana, Capitol, a um custo de $ 200.000), os Rolling Stones com o vídeo de arrastar de Have You Seen Your Mother, Baby, Standing in the Shadow? 
Ao mesmo tempo, havia os novos ambientes totais: os shows de luz dos salões de baile de San Franciscan, os designs op art de novas discotecas cavernosas como a Cheetah de Nova York, o sensorium do Exploding Plastic Inevitable de Andy Warhol, que dava a impressão de “tudo ocorrendo simultaneamente". Em 1966, muitas vertentes da arte, música e entretenimento estavam todas chegando ao mesmo ponto por meios diferentes: o foco total no instante que é a marca registrada de muitas religiões orientais; o acontecimento; a experiência com drogas; o êxtase de dançar. 

Andy Warhol e o Exploding Plastic Inevitable Show 

Foi também um ano de incrível fertilidade na música negra americana. Para citar apenas um artista: James Brown visitou o Reino Unido pela primeira vez em março; tocou no Madison Square Garden em abril; apareceu no Ed Sullivan pela primeira vez em maio, com seus próprios músicos. No final de junho, ele foi o único grande astro pop a tocar pelos ativistas na Marcha Contra o Medo, dois dias depois de terem sido atingidos por gás lacrimogêneo por policiais estaduais: esta foi a última grande ação unida do movimento pelos direitos civis e o momento quando Stokely Carmichael lançou a ideia do Black Power. 
James Brown também fez um dos dois discos que, durante 1966, explodiram completamente o tempo linear em suas respectivas buscas pelo presente perpétuo. O primeiro foi “The tomorow never knows”. A segunda foi no clip do single Don't Be A Drop-Out: Brown colocou uma música chamada Tell Me That You Love Me, adaptada de uma gravação ao vivo. Loopando o vocal com uma figura de guitarra de Lonnie Mack, Brown e o produtor Bud Hopgood criaram um delírio chocante de som com um padrão de bateria insanamente rápido que prefigurou diretamente o drum'n'bass, quase 30 anos depois. 

Um delírio chocante de som ... James Brown 

A música pop era o novo Olimpo. Lou Reed a reconheceu como a arena de sua geração: “A música é a única coisa viva, viva”. Escrevendo na mesma edição da revista Aspen, Robert Shelton concordou: “A era das novas artes de massa está nos movendo para cima, para dentro, para fora e para frente. Nesta era de exploração, existem muitas raças de navegadores, mas poucos mais ousados do que os poetas-músicos que estão levando nossa música pop em novas direções ... expressando uma filosofia underground de vanguarda para um público de massa, aprofundando o pensamento das massas dos jovens. ” 


James Brown – Don’t be a drop out 



The Beach Boys - Good Vibrations 



Muitos discos desses “músicos-poetas” chegaram às paradas. O exemplo mais óbvio é o Beach Boys ' Good Vibrations, gravado em sessões que duraram 60 horas ao longo de sete meses, a um custo de $ 50.000. Foi tecnológico, mas emocional, sensual e espiritual - projetado como um momento de fusão que restauraria a polaridade da cultura pop para positiva. 
O que era empolgante em 1966 era a maneira como as coisas não funcionavam como de costume, uma sensação que ainda pode ser ouvida nos discos do ano: a música estava conectada a eventos fora da bolha da cultura pop e era assim que muitos seus ouvintes. Foi um ano em que ideias e experimentos audaciosos valeram a pena no mercado de massa e na cultura jovem, com uma reação correspondente daqueles para os quais a taxa de mudança era muito rápida. 

O êxtase de dançar ... Fotografia: Lövenich / ullstein bild via Getty Images 

Quanto mais o jovem empurrou para frente, mais os adultos empurraram para trás. No verão, o grupo pop mais famoso do mundo se deparou com forças imutáveis: manifestantes de direita xenófobos em Tóquio; os agentes do presidente Marcos, em vingança física por um suposto insulto; e os disc-jóqueis do deep south que, indignados com a reimpressão dos comentários de John Lennon sobre os Beatles serem “mais populares do que Jesus”, organizaram boicotes, ameaçaram a turnê do grupo e conduziram “Beatle Burnings”. 


Dance Styles of the 60s 



Rock n' Roll Classic Video mix 50's and 60's ..."America never stops dancing" 



A polaridade mudou de positiva para negativa. Os Beatles pareciam ter se tornado um pára-raios para todos os tipos de tensões que pouco tinham a ver com sua música: eles se tornaram o alvo de todos aqueles que resistiam ao ritmo das mudanças. Em agosto, o escritor James Morris declarou que “a indiferença absoluta dos Beatles em relação a velhos preconceitos e preconceitos, sua marca de iconoclastia festiva, desenvolveu uma atração para mim, assim como para milhões de céticos em todo o mundo”. Mas essa iconoclastia tinha seus perigos. Como Morris citou um conhecido idoso: “Vou lhe dizer qual é o problema com os Beatles: eles não têm respeito”. 

John Lennon: Nós somos mais populares que Jesus agora. 

Mais do que qualquer outro ano até agora naquela década, foi a época em que aquela cultura jovem cada vez mais assertiva e visível colidiu com a realpolitik. No Reino Unido, a ideia da revista Time de Swinging London foi contra o congelamento de salários do governo trabalhista: outro tipo de austeridade. “A era do pop” parecia estar “parando”, observou o Sunday Times naquele mês de agosto. No final do ano, um editor sênior da revista Time opinou que "swingin 'saiu do controle porque é o tipo de diversão que apenas uma nação rica pode pagar - e a Inglaterra não é mais uma nação rica." 

Tecnológico, mas sensual e espiritual ... os Beach Boys 

Enquanto Good Vibrations alcançava o primeiro lugar no Reino Unido e nos Estados Unidos, a reação contra a cultura jovem começou. Uma semana depois da eleição de Reagan como governador da Califórnia, um grande distúrbio irrompeu na Sunset Strip, quando um protesto de mais de mil adolescentes - enfurecidos pelo policiamento pesado de leis arcaicas de toque de recolher - provocou uma forte reação. Com LA sendo um centro de mídia, isso virou notícia nacional. Nas semanas seguintes, ambos os lados intensificaram sua retórica, culminando com espancamentos brutais da polícia em 26 de novembro e 10 de dezembro. 
O que restou após os distúrbios de Sunset Strip foi um gosto residual desagradável, um prenúncio dos pontos de inflamação mais sérios que viriam. Pois o que parecia ter se resumido a uma guerra de gerações - o que Derek Taylor, então o PR dos Beach Boys, chamou de “toda a questão podre do Velho contra o Jovem”. Como o jornalista Jerry Hopkins escreveu naquele dezembro, logo após o auge dos distúrbios, “o fato é que existem duas facções, dois lados. Uma geração não entende ou se recusa a tentar entender quem está por trás dela ... a linha foi traçada. ” 
Os jovens começaram a flexionar seus músculos - para ver além de um mercado, para um modo de vida diferente. Como relatou a Time, “Nos Estados Unidos, os cidadãos de 25 anos ou menos em 1966 quase superavam os mais velhos: em 1970, haverá 100 milhões de americanos nessa faixa etária ... Se as estatísticas implicarem em mudança, as credenciais da geração mais jovem garantem isso. Nunca os jovens foram tão assertivos ou articulados, tão bem-educados ou tão mundanos. Previsivelmente, eles são uma raça altamente independente e - aos olhos dos adultos - sua independência os tornou altamente imprevisíveis. ” 

Os distúrbios na Sunset Street 
Photograph: Michael Ochs Archives/Getty Images 

Os anos 60 atingiram o pico em 1966; foi o ano em que a década explodiu. As canções daquela época ainda encantam gerações sucessivas, mas também são uma resposta ao seu lugar e época. Foi, como disse o escritor e catalisador cultural Tony Hall naquele dezembro, “bastante óbvio que a música contemporânea reflete a vida contemporânea e vice-versa”. Pop refletiu o mundo durante 1966, que havia algo mais do que imagem e vendas em jogo. 

Os negros foram especialmente atingidos no protesto da Sunset Street 

Não foi apenas o repentino afrouxamento dos laços causado pelo sucesso dos Beatles e o dinheiro que fluiu para o setor jovem. A música daquele ano coexistiu com o movimento em direção a uma maior liberdade social, seja na legislação liberalizante do governo trabalhista do Reino Unido ou nos vários movimentos de libertação dos Estados Unidos, grupos de direitos civis como o SNCC e o SCLC, a Organização Nacional das Mulheres, homófila grupos como as Filhas de Bilitis, Vanguard ou a Sociedade Mattachine. Falou do impulso para a democracia e a abertura que o torna ainda hoje contestado, que milita contra a nostalgia geracional que torna o período rotineiro. 
O que é fascinante é como os High 60s continuam politizados. Esta era tem sido denegrida consistentemente por políticos de direita ao longo de um período de 30 anos, desde a era Reagan / Thatcher. As estruturas da sociedade foram alteradas - em particular por leis relacionadas a benefícios para jovens, desemprego estrutural, etc. - para remover o poder dos jovens como uma coorte. Mesmo assim, os High 60s são rejeitados por vários especialistas e historiadores, como exagerados, irrealistas, elitistas, “apenas algumas pessoas em Londres” - independentemente dos ataques ad hominem a grandes figuras. Esse ponto de vista - proposto por gente como Dominic Sandbrook - em si é interessante: por que eles fazem isso e a quem isso beneficia? 
Os neoliberais de hoje veem tudo em termos estritamente financeiros e procuram impor essa visão a todos nós. É tudo uma questão de dinheiro, nada mais. Mas, como diz o velho ditado, eles sabem o custo de tudo e o valor de nada. A tentativa de reprogramar os meados dos anos 60 sob esse aspecto, embora seja uma provocação tentadora, simplesmente consegue manchar o passado com os valores do presente. Voltando às fontes primárias, você entra em um mundo totalmente diferente. Durante 1966, os jovens estavam criando uma cultura de massa estimulante e progressiva à vista de todos. Eles ousaram sonhar. Por um tempo, eles se safaram, e esse espírito permanece inspirador. 

(•) 1966: The Year The Decade Exploded por Jon Savage (Faber & Faber) é uma leitura recomendada e obrigatória. 




Até o próximo encontro!


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