Capítulo 2 – Parte A
O Nascimento do Blues na Sociedade Americana
1.
Introdução
O
Blues nasceu com a voz dos escravos dos campos de algodão do sul dos Estados
Unidos. Eles cantavam durante os trabalhos nas plantações para aliviar a dureza
do trabalho.
Enquanto
os negros soltavam suas emoções, os brancos viam o lado prático da coisa. Para
os fazendeiros, as work-songs (canções de trabalho) ajudavam a imprimir um
ritmo ao trabalho no campo e deixavam os escravos mais alegres. A partir da
década de 1860, os spirituals - canções religiosas entoadas pelos negros
africanos desde sua chegada à América - sofreram uma mutação fundamental. Além
de apelar para Deus, os escravos começaram a curar suas dores de amor através
da música.
O
Blues é, também, o lamento do andarilho das estradas, o mesmo que chegou até as
cidades, adotou o microfone e a guitarra elétrica.
Criado
no século passado, ele tomou sua forma final somente a partir de 1900. As
primeiras gravações datam dos anos 10. Mas o Blues esperaria um pouco mais para
florescer graças ao talento de Big Bill Broonzy, Bessie Smith, Muddy Waters,
Otis Spann, Bo Diddley, B.B. King, Lowell Fulson, John Lee Hooker, Howlin,
Wolf, Sonny Boy Williamson, Memphis Slim e Buddy Guy.
A
transgressão não estava somente na conotação amorosa e sexual das letras do
Blues. No formato musical, o estilo também marcou uma ruptura.
Fugindo
da complexidade do Jazz e da rigidez dos eruditos, o Blues nasceu como uma
música crua.
Com
uma base harmônica quase simplória, o estilo disseminou-se rapidamente pelo sul
dos Estados Unidos. Tocar e cantar o Blues era, teoricamente, simples. Mas o
que transformava um mero curioso num verdadeiro bluesman era o sentimento que
ele colocava em sua interpretação.
No
final do século XIX, a alta taxa de natalidade provocada pela emancipação dos
escravos proporcionou outros tipos de trabalho aos negros. Muitos deixaram o
campo e partiram para a periferia das grandes cidades do Sul, como Chicago,
Memphis e a região do Delta do rio Mississipi, nos estados de Arkansas,
Tennessee, Alabama, Luisiana e Mississipi, para trabalhar nas primeiras
metalúrgicas e refinarias do país ou em canteiros de obras.
Mas
a maior parte deles foi parar nos entrepostos de algodão e tecidos. Esse
movimento em direção às cidades do Sul atingiu seu pico entre a virada do
século XX e o final da primeira Guerra Mundial (1914-1918).
Mamie
Smith
A
formação de guetos foi inevitável. Neles, os negros ralavam, sofriam e também
se divertiam. A procura por prazer em prostíbulos, bares e casas de jogo tinha
um ponto em comum: a música. Neste ambiente, explodiu a revolução do Blues
urbano.
Quando
conseguiam descolar instrumentos musicais, os negros tocavam o banjor, um
ancestral do banjo de origem africana, e o fiddle, espécie de violino trazido
para os Estados Unidos pelos irlandeses. O violão apareceria logo depois,
graças à influência espanhola vinda do México.
Os
primeiros Bluesmen profissionais formam uma categoria à parte. Incapacitados
para o trabalho manual, cegos e deficientes encontravam na música seu meio de
vida. Blind Lemon Jefferson, Blind Willie McTell e outros tantos Blinds (cegos)
começaram assim. Também nascia a tradição do músico itinerante de vida na
estrada.
O
primeiro Blues a virar disco foi gravado em Nova Iorque pela cantora Mamie
Smith, em 1920.
"Crazy
Blues" superou todas as expectativas, vendendo 75 mil cópias por semana.
Mamie
Smith – Crazy Blues (1920)
Com
o sucesso, Mamie voltou ao estúdio três vezes em três semanas e virou febre.
A
partir de 1921, todas as grandes gravadoras americanas passaram a ter suas
"race series" (séries da raça), subdivisões que lançavam discos de
músicos negros para o consumo da população dos guetos urbanos do sul.
A
primeira onda de sucesso de vendas de discos foi capitaneada por cantoras como
Bessie Smith, Geertrude Ma Rainey e Alberta Hunter.
Até
a segunda Guerra Mundial (1939-1945), o mais importante celeiro do Blues era a
região do Delta do Mississipi. Ali surgiram Bluesmen fundamentais como Charlie
Patton, Tommy Johnson, Son House, Skip James, Big Joe Williams e o lendário
Robert Johnson.
Para
alguns historiadores, o que fazia o Blues do Delta ser único era a forte
influência africana, com um ritmo sincopado, mascado pelos pés, o uso do
falsete nos vocais, repetições de um mesmo acorde e o uso de um truque que
viraria uma marca registrada do gênero: o slide.
Deslizando
o gargalo de uma garrafa ou um pedaço de osso - mais tarde, tubos de metal
também seriam usados - sobre as cordas do violão, o músico conseguia um efeito
inédito no instrumento.
Com
o início da Segunda Guerra Mundial, o panorama social começou a mudar nos
estados do Sul. Graças à entrada de negros nos quadros militares, surge uma
promessa de integração racial. Pura ilusão. Encontrando o mesmo cenário na
volta para casa, os negros passaram a se isolar cada vez mais em bairros
próprios e nasce uma consciência racial que desembocaria nos movimentos pelos
direitos civis dos anos 60.
No
mundo da música, o esquecido Blues regional cede espaço para um som nitidamente
urbano, marcado pela presença de um novo ingrediente: a guitarra elétrica.
Novas
gravadoras abrem suas portas e outros bluesman passam a dominar a cena. Em
Memphis, agora a capital da região do Delta do Mississipi, garotos como B. B.
King, Elmore James, Sonny Boy Williamson e Howlin' Wolf dão seus primeiros
passos. Em Chicago, surge outra leva de gênios.
Lá
nasceu a parceria de Muddy Waters e Willie Dixon, que rendeu frutos como os
clássicos "Hoochie Coochie Man", "Mannish Boy" e
"Rollin' and Tumblin'". A cidade Aina viu surgir Little Walter, Otis
Rush, Magic Sam e Buddy Guy.
Janis
Joplin - Black Mountain Blues (Live) - (Bessie Smith Cover) - Early 1960s
Muddy
Waters - Manish Boy
Enquanto
isso, o solitário John Lee Hooker levanta sua voz em Detroit. Cada um à sua
maneira, todos deixaram sua marca na história do blues.
Mas
os Estados Unidos estavam mudando. Nos anos 50, o Rock'n'Roll explode, uma
célebre frase resume bem essa situação: "O Blues teve um bebê e ele ganhou
o nome de Rock'n'Roll.
A
partir desta fase, o estilo criado pelos escravos do sul dos Estados Unidos
começou a ser um ingrediente obrigatório na receita de inúmeros cantores e
bandas de Rock. De Elvys Presley a Janis Joplin. De Rolling Stones, Led
Zeppellin a Deep Purple, passando por The Doors, Creedence Clearwater Revival e
The Who, todo mundo sofreu alguma influência do blues, culminando com Jimi
Hendrix e Eric Clapton, estes em diversas formações de banda ou em carreira
solo.
2.
O Nascimento do Blues
É
no diário de Charlotte Forten que aparece pela primeira vez o termo
"Blues". Charlotte era uma negra nascida livre no Norte, que tinha
estudado e se tornado professora. Depois de alguns anos de ensino no estado de
Maryland, decidiu, a pedido do proprietário, ensinar a ler os escravos de Edito
Island, na Carolina do Sul e aí morou de 1862 a 1865. Ela manteve um relatório
quase que diário desses anos, notando sobretudo as dificuldades de toda ordem
que encontrava em suas obrigações. No domingo de 14 de dezembro de 1862
escreveu, transtornada pelos gritos que subiam dos bairros de escravos:
"Voltei da igreja com o Blues. Joguei-me sobre meu leito e pela primeira
vez, desde que cheguei aqui, me senti muito triste e muito miserável". Ela
não define as relações eventuais do Blues com qualquer expressão musical, mas
nota, todavia, alguns dias mais tarde (18 de fevereiro de 1863), falando da
canção Poor Rosy: "Uma das escravas me disse: Gosto de Poor Rosy mais do
que de qualquer outra canção, mas para cantá-la bem é preciso estar muito
triste e com o espírito inquieto".
Charlotte
Forten
Não
há nenhuma dúvida que esses termos definem o humor necessário ao Blues, como
testemunham dezenas de entrevistas de artistas. Se Poor Rosy, tal como a
conhecemos através de algumas versões gravadas depois de 1920, não é
propriamente um Blues, mas uma espécie de balada bem ritmada, e se sabemos que
o Blues provavelmente não existia na época em que Charlotte Forten se
encontrava em Edito Island, o espírito do Blues em si já existia e o termo
"Blues", com todas as suas conotações depressivas e de fossa,
certamente era muito difundido entre os negros.
3.
A música dos negros durante a escravidão
a)
Natureza da Música
Os
relatos que temos dessa época, principalmente os feitos por uma famosa atriz
inglesa Fannie Anne Kemble, quando de sua estadia em uma plantação na Geórgia,
dão conta de que os brancos interpretavam o Blues como sendo uma música
extraordinariamente selvagem e difícil de relatar; a maneira pela qual o coro
explode entre cada frase da melodia cantada por uma voz solista é muito curiosa
e eficaz. Ela define assim a função desses cantos; ritmar o trabalho e fazer
com que pareça mais leve.
0
que pode surpreender muito mais é o fato de que Jefferson não revela nenhum
traço de tambores entre os escravos negros. 0 Black Code aplicado pelos
plantadores do Sul estipula que os escravos não têm o direito de tocar tambores
ou flautas que "poderiam ser usados, tal qual na África, como meios de
linguagem e de comunicação e poderiam servir para incitar à revolta".
b)
Função da música
b.1.
O trabalho nos campos
Os
negros arrancados da África eram considerados unicamente como um capital humano
destinado ao trabalho. A única chance de sobrevivência para o escravo negro era
ser uma boa ferramenta de trabalho. Toda capacidade de qualquer natureza de que
fazia prova o escravo era usada pelo senhor se pudesse servir ao trabalho. Isso
aplica-se perfeitamente à música: o canto tradicional africano (com um solista
e a resposta em coro do grupo) que ritmava os trabalhos do campo na África do
Oeste foi, parece, transposto tal e qual para as plantações americanas.
Trata-se, é claro, de work-songs, empregadas ainda em torno de 1960 nas penitenciárias
para negros no Sul.
b.2.
A religião
Claro
que uma sociedade tão profundamente cristã como a dos plantadores escravagistas
do Sul não podia fazer a utilização do homem negro unicamente como animal de
carga. Depois de durante muito tempo considerarem-se os negros como
meio-macacos, resolveu-se evangelizá-los em massa, levando-lhes assim a
felicidade de crer em Jesus. Bem depressa, e provavelmente desde o início do
século XIX, o canto religioso tornou-se um dos meios de expressão privilegiados
(porque, é claro, autorizado) do gênio africano. Com uma considerável
capacidade de adaptação, os escravos negros transformaram os hinos batistas e
metodistas em cantos que misturavam as origens africana e europeia e que se
espalharam no mundo inteiro sob o nome de negro-spirituals.
b.3.
A dança
É
de se notar que, embora alguns plantadores martirizavam alguns de seus
escravos, outros - sem dúvida a maioria - tinham uma atitude benevolente e
paternalista, aliviando a consciência enquanto manejavam uma mão-de-obra
preciosa e cada vez mais cara no decorrer do século XIX. Aumentam os
testemunhos de complacência a respeito de relações amistosas entre brancos e
negros nas plantações. As famílias de escravos frequentemente habitavam
pequenas casas individuais disseminadas pela plantação e rodeadas por uma horta
individual que era de sua propriedade.
Da
mesma maneira, a noite de sábado era frequentemente reservada aos cantos e
danças.
Ainda
uma vez, a mistura das danças tradicionais africanas trazidas pelos negros com
as danças europeias que os escravos tinham ocasião de ver e ouvir iam resultar
nessa "dança das plantações" (plantation dance).
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