Capítulo 2 – Parte B
O Nascimento do Blues na Sociedade Americana
4. Afirmação de uma cultura negra depois da emancipação
Não
se pode afirmar que o Blues já existia no tempo da escravidão, nem que ele
nasceu da emancipação dos escravos, mas sim de transformações da música negra
sob o efeito das novas condições socioeconômicas criadas por essa emancipação.
Blues - Da escravidão à conquista do mundo!
O nascimento do Blues propriamente dito situar-se-ia então, muito
provavelmente, no fim do século XIX ou no início do século XX.
Blues - Da escravidão à conquista do mundo!
5. Transformações socioeconômicas do Sul
a)
Desmembramento de grandes propriedades
O
fim da guerra civil e a ocupação do Sul pelos nortistas levaram em ampla medida
ao desaparecimento das plantações de um só proprietário e ao desmembramento em
pequenas fazendas.
Soldados
Norte-Americanos acampados
Os
antigos escravos tornaram-se trabalhadores assalariados.
Os
negros passaram a ter a possibilidade de comprar terras através de organismos
criados para a ocasião e geralmente constituídos de aventureiros, fraudadores e
especuladores. Por outro lado, a imensa maioria dos negros emancipados não
tinha evidentemente nenhuma possibilidade financeira para tal empreendimento.
Campos
de algodão
Com
efeito, os escravos negros foram em uma ampla maioria empregados como
arrendatários, com o direito de cultivar um pequeno pedaço de terra em troca de
deveres exorbitantes: 80 a 90% da colheita devida ao proprietário e uma dívida
para toda sua vida - e a de seus herdeiros - para com o Armazém Geral mais
próximo (o que queria dizer várias milhas de distância e às vezes várias
dezenas de milhas), frequentemente também possuído pelo mesmo proprietário da
terra.
Da lavoura ao blues - A música que veio dos cânticos dos escravos
Mas
as correntes de escravos trabalhando uns amarrados aos outros e retomando em
coro as work-songs estavam desmanteladas. Em seu lugar se desenvolve o canto de
um cultivador solitário guiando sua mula ou puxando seu arado, saudando o
assovio de um trem longínquo ou o barulho do vento nas árvores, improvisando
sem outra restrição que não a tradição aninhada no âmago de seu inconsciente
que se chamavam hollers.
b)
Desenvolvimento de um subproletariado industrial
Nem
todos os negros, contudo, tornaram-se arrendatários: aliás, com a alta
natalidade registrada depois da emancipação, não se tinha necessidade de todos
esses braços.
Uma
parte deles procurou trabalho em pequenas fábricas (metalúrgicas, refinarias)
que começavam a despontar ao redor das grandes cidades do Sul, ou como
lenhadores (rachadores de lenha, desmatadores), ou nas fábricas de terebentina
que eram criadas perto de jazigos florestais, em canteiros de obras de grandes
trabalhos (construção de estradas, de vias férreas, de barragens) ou ainda como
barqueiros e também, e talvez sobretudo, nos entrepostos de algodão ou de
usinas têxteis.
Assim
se desenvolveu, da Guerra de Secessão à Primeira Guerra Mundial, uma corrente
de migração contínua das plantações para as cidades do Sul, significando uma
mudança de atividade para os negros e preparando-os para a grande migração para
o Norte que iria começar verdadeiramente depois de 1918.
Os
que escolheram (ou tiveram de) abandonar os trabalhos agrícolas formaram
rapidamente um subproletariado miserável, morando em cabanas insalubres às
portas das cidades, corroídos pela sub-educação, pelo alcoolismo, pelo
amontoamento de famílias e pela promiscuidade, pela ausência de perspectivas de
futuro. O lenhador, o trabalhador das matas, o construtor de diques, o
barqueiro, enfim, todos continuaram (ou reencontraram) a tradição das
work-songs, modificadas pela dos hollers já largamente implantada nas fazendas
que acabavam de deixar.
c)
O aparecimento dos músicos profissionais
A
existência desse subproletariado semiurbano criou uma extraordinária procura de
divertimentos: lojas de bebidas, salas de jogo, espeluncas clandestinas, casas
de prostituição, tendo sempre música. Muito rapidamente, apareceu uma categoria
social nessas novas comunidades negras: a do músico cego ou aleijado, inapto
para o trabalho manual, resmungando contra o duro trabalho da cultura do
algodão ou simplesmente infringindo as leis em sua comunidade de origem e
fugindo à justiça. Frequentemente itinerante, o músico, contador de histórias,
cantor de canções - songster, como começou a ser chamado - passa de vilarejo em
vilarejo, de campos florestais a barragens em construção, distraindo
trabalhadores e contramestres, trabalhadores agrícolas e florestais, em troca
de pouso, comida e uma garrafa de uísque.
O
cantor tocava também um instrumento para marcar o ritmo e fazer dançar, mas um
instrumento que podia levar em suas peregrinações - inicialmente um banjo ou um
violino, mas logo, e cada vez mais à medida que o século XX avançava, uma
guitarra leve, prática e barata muito mais completa que o violino e muito mais
flexível que o banjo.
É
claro que as casas de jogo e os prostíbulos, e logo os cinemas mudos, tinham
frequentemente seu músico particular, bem vestido e bem munido, usando piano
para tocar os temas trazidos dos campos assim como as baladas em voga nas
grandes cidades do Norte, que ele adaptava à sensibilidade negra, usando
principalmente e urna vez mais uma abundância de Blues-notes obtidas com
dificuldade, enrolando panos em alguns martelos de seu piano.
d)
Isolamento dos negros na sociedade sulista
A
supressão da escravidão modificou de forma considerável o lugar dos negros na
sociedade sulista. As intenções generosas da Reconstrução e da ocupação do Sul pelas tropas ianques no imediato pós-guerra permitiram efetivamente aos antigos escravos, às vezes, o acesso a um certo nível de educação e o exercício de um mínimo de direitos cívicos, entre eles o direito de voto.
Mas
em 1877, as últimas tropas nortistas deixaram o estado de Luisiana, colocando
fim a uma ocupação muito difícil e freando também o empreendimento de
reconstrução que se revelou então um fracasso total. A ideia de uma
reconciliação necessária entre o Norte e o Sul para construir uma nação veio
sem dificuldades se fazer nas costas dos negros.
e)
Subcidadania
Para
os negros, a saída das tropas nortistas tomou a feição de um desastre, e o
espírito de revanche dos brancos sulistas e principalmente dos mais extremistas
agrupados em associações secretas, racistas e violentas, como a Ku Klux Klan ou
os Cavaleiros do Branco Camélia, veio se exercer imediatamente e com ferocidade
sobre os antigos escravos promovidos a "cidadãos iguais".
Eram
frequentes os relatos de linchamentos estarrecedores.
O
que acabou por forçar a eliminação de muitos direitos dos negros.
f)
Segregação
Paralelamente,
importantes medidas de separação das raças em todos os lugares públicos eram
implementadas.
Ku
Klux Kan
No
Sul a segregação significava para os negros escolas mais pobres, hospitais mais
desguarnecidos, transportes mais caóticos, a certeza, de qualquer forma, de ter
sempre os prédios mais miseráveis e sórdidos do que os dos brancos.
A
chegada da crise econômica no começo da década de 1890 atingiu a monocultura
dos estados do Sul duramente, os negros passaram a ser presos por questões
absolutamente fúteis, aumentando a população carcerária, que serviria de
mão-de-obra compulsória à todos que dela necessitassem. Esses negros eram
acorrentados uns aos outros e supervisionados por “mestres” armados de chicote.
Por tudo isso, a vida dos negros do Sul no início do século XX era mais difícil
e mais precária que nos tempos da escravidão.
g)
A alma negra
Entre
1895 e 1900, floresceram seitas religiosas negras em todo o Sul e Sudoeste, das
quais a mais célebre era a dos pentecostais. Essas novas Igrejas negras eram
animadas por um fervor religioso extraordinário que encontrava sua expressão
natural nas Gospel Songs, herdeiras diretas dos negro-spirituals do tempo da
escravidão e que veiculavam uma força de contestação e de afirmação de sua
própria cultura na mesma proporção em que os brancos não se preocupavam mais em
evangelizar as "almas negras".
Precious
Lord - Little Richard (Gospel Music 1960)
Harlem
Gospel Choir - Amazing Grace
Assim
surgiram notáveis preachers negros, verdadeiros guias espirituais da comunidade
negra, a quem se escutava com atenção e a quem às vezes se venerava. Também
cada vez mais freqüentemente, o preacher aumentava a força de sua mensagem ao
entregá-la cantando e tocando guitarra ou piano.
h)
Aparecimento da balada negra: o Blues
Paralelamente,
o songster elaborava, sobre o modelo das baladas populares de origem
anglo-saxônica, verdadeiras canções de gesta, que falavam de homens negros a
homens negros. Tal acontecimento, tal personalidade, tal bairro de tal cidade,
tal marginal lutando contra a sociedade (... dos brancos) davam matéria a uma
balada que era divulgada de vilarejo em cidade, de acampamento de trabalhadores
em bordel, que era retomada, aumentada, aperfeiçoada, adaptada à personalidade
de cada novo contador.
Como
se lembrava Furry Lewis, que conheceu bem toda essa época:
"...
o songster ia à igreja, e o pregador vinha dançar no vilarejo, o jovem músico
vencia ao tornar-se pianista em um dos bares de Memphis e freqüentemente, com a
idade, tornava-se pregador".
Pouco
a pouco, essas grandes atividades musicais dos negros americanos se
influenciaram mutuamente, imbricaram-se umas sobre as outras, dando um embrião
de codificação, uma espécie de "regra de ouro da balada negra" que,
alguns anos mais tarde, o disco veio reforçar e depois estratificar.
As
Chain Gangs
Foi
assim que em algum lugar do século XX - do fazendeiro solitário dedilhando seus
hollers, chaing gangs de prisioneiros perpetuando os sotaques das work-songs do
tempo da escravidão, do pregador inflamando as almas dos fiéis com a ajuda de
sua guitarra, do pianista de casa de jogo martelando suas teclas para que sua
clientela dançasse e do cantor itinerante disseminando suas baladas - surgiu o
Blues.
Lightning-
Long John - Old Song by a Chain Gang
Southern
Prison Blues Rosie Chain Gang Blues
Chain
Gang - Cadence (1990)
Chain
Gang - Sam Cooke
Bring It On Home - Roger Ridley
Hugh
Laurie - Saint James Infirmary (Let Them Talk)
Até
o próximo encontro!
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